(1) O mundo e a vida, sobretudo o modo como observamos “tudo isso”… por António Dente

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O Mundo é engenho da terra e do céu.

O Mundo, engenho da terra e do céu começou a girar.

O Mundo, engenho da terra e do céu, gira e depressa.

O Mundo, engenho da terra e do céu, gira tão depressa que causa a confusão no Mundo dos homens que é pobre.

O Mundo, engenho da terra e do céu, que gira tão depressa que causa a confusão no Mundo dos homens que é pobre, está ligado ao Mundo pobre dos homens pela vida que lhe deu.

O Mundo é engenho da Munda.

Escala do mundo – Distância compreendida entre o centro do mundo e os limites do céu.

Escala do céu – Distância compreendida entre o centro de um homem e os limites da sua visão.

Conspirar sobre o engenho do mundo – engenho circular com certeza – é ficar a olhar o céu e ser por ele olhado.

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De pé, em frente à tela branca com o espelho a seu lado, o pintor começava a esboçar os traços de um auto-retrato sobre a luz forte de um dia que entrava pela janela do estúdio.

Ao final da tarde, já com a vista cansada, o pintor decidiu acender uma vela junto de si e outra junto do espelho. O quadro já estava mais que esboçado com as medidas e as proporções correctas, só faltava pintar o seu rosto.

Hesitação…

Se houvesse alguém que naquele momento espreitasse pela janela do estúdio, viria o pintor retido no olhar do seu reflexo, imóvel entre o espelho e a sombra projectada pela luz das velas.

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- És cego homem? Vê para onde andas sim?

- Peço desculpa senhor foi sem querer, estava distraído.

- A distracção é a morte do artista!

- Desculpe.

- Está doido homem? Aleijou-me e nem pede desculpa!

- Perdoe-me senhor não foi por mal, não o ouvi surgir.

- Como não me ouviu surgir? Eu estive sempre aqui. Você é que chocou contra mim.

- Desculpe

- Oh! Homem está a brincar comigo ò quê?

- Ai! Peço desculpa senhor, não o vi.

- Isso sei eu, quase me entortou o nariz…Você é louco.

- Não! Desculpe mas isso não lhe admito! Eu posso ser muito distraído, mas caramba, isto é obra! Desde o início da rua que choquei três vezes com o senhor! Tão louco é o que choca como aquele que está parado em todo o lado.

- Como assim?

- Então desde quando é que é normal estar parado em todo o lado?

-...

-Ouça, a rua ainda é comprida e prevejo que não há grande volta a dar ao nosso problema a não ser pelo entendimento.

- Explique-se.

- Esclareça-se já aqui que, para a próxima vez que chocarmos, fica claro o seguinte: Ou foi porque somos os dois loucos e não apenas eu, ou então foi por culpa da coincidência.

- Ou seja, se por acaso chocarmos outra vez, ou foi por coincidência ou porque ambos somos doidos?

- Isso.

- Está bem. Adeus e espero que nunca mais o veja.

- Eu também. Adeus.

- Você é doido ou quê? Sou transparente por acaso?

- Ai! Peço desculpa senhor, não o vi.

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“Quadrado

Deixai-me com a sombra

Pensada na parede

Deixai-me com a luz

Medida no meu ombro

Em frente do quadrado

Nocturno da janela”

Sophia de Mello Breyner Andresen

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“ «Que não seja uma paixão que respire a volúpia terrena, mas uma serena paixão celeste. Sem ela, o homem é incapaz de erguer-se do chão e de criar os sons divinos da serenidade. Porque é para a serenidade e apaziguamento de todos que a alta criação da arte desce ao mundo. A arte não pode instalar a revolta na alma, mas deve aspirar eternamente a Deus, como uma oração. Porém, há momentos, momentos obscuros…»”

“O retrato” de Nikolai Gógol

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“ «O problema está todo aí», pensou Sayed Karam. «O filho do pedreiro morreu por falta de medicamentos, quer dizer, por ser pobre. Verdade elementar, é certo, mas esta noite com uma importância especial, porque é a primeira vez que penetra no meu coração. Eis porque devo considerá-la como uma revelação. A partir de agora, o meu amor terá um sentido e a minha vida uma razão. Para mim, viver vai significar combater.»”

“Os esfomeados só sonham com pão” Albert Cossery

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Chovia quando chegava a casa de autocarro. Ao sair no terminal, apanhei uma flor que estava caída no chão; um homem que me viu apanhá-la disse-me que era “um olá da primavera neste começo de Outono”. Sorri para ele, ele sorriu para mim, e apesar da chuva, não deixou de me contar um episódio em que, perdido no meio de um nevoeiro, encontrou a maior roseira que até então vira. Disse-lhe que talvez por esses achados valesse a pena estar perdido. “Talvez…” respondeu-me. Depois despedimo-nos e fui para casa.

As flores daquela árvore eram lindas. Arranquei uma para a levar para o meu quarto e pô-la sobre o rebordo da janela onde deixo folhas, flores e raminhos morrerem de secos. Era branca e cheirava à plasticina com que brincava na minha infância. Agora está seca junto das outras folhas, flores e raminhos, todos secos, reunidos sobre a luz e a chuva de lá de fora.

É difícil ter tempo livre, e ainda mais difícil partilhá-lo com os outros. Hoje o dia parecia outro, um desconhecido que se mostrava ao longe, limitando-se a passar.

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